"Não gosto de catedrais, do peso das pedras, da dimensão excessiva das naves, da mitologia de um Deus em cujo nome foram construídas e que aqui convoca e esmaga os seus crentes.
Não gosto da profusão de altares de castiçais de talha dourada, de sacrários e cânticos e painéis.
Não gosto da arquitectura que não é à escala humana, nem nos meios utilizados nem nos fins que representa.
Prefiro a extensão plana das mesquitas, o seu jogo de colunas e sombras, o despojamento geométrico dos seus azulejos.
Prefiro mil vezes a herança do mundo árabe morto em Granada do que os símbolos da Reconquista cristã que o sepultou.
Prefiro mil vezes a leveza do mundo mediterrânico do que o sufoco das catedrais e castelos do Sacro Império Romano-Germânico.
Prefiro mil vezes os templos gregos, entre resina e mar e a quietude das oliveiras, do que os castelos de Inglaterra e as florestas de bétulas do Norte.
Prefiro mil vezes as kasbahs de Marrocos do que os castelos feudais da Europa, mil vezes Granada do que Versalhes.
E antes um Olimpo de Deuses de cada coisa do que um Deus único, antes o Al Andaluz do que os Reis Católicos, antes Roma do que o Papado, antes a luz e a democracia gregas do que a escuridão medieval.
Falo da nossa herança, o Mediterrâneo - a mais extraordinária civilização humana, a civilização da luz, da arte, da arquitectura, da democracia, do direito, da navegação e da descoberta, do mar e do deserto, das ilhas e dos golfos, das vinhas, dos olivais e dos pinhais, das estátuas profanas, das colunas e dos azulejos, dos pátios, dos terraços e das varandas, da cal, do branco e do azul. E a civilizaçao do Egipto, de Creta, de Atenas, de Roma, de Volubilis, de Tânger. Das cidades portuárias, de Alexandria a Lisboa e das Ilhas Gregas, da Sicília, de Malta, de Chipre, da Sardenha. São três mil anos a contemplar as estrelas do céu, a ouvir o som da água nas fontes e a tentar decifrar o mistério da morte.
Antes que a ideia de Deus esmagasse os homens, antes dos autos de fé, das perseguiões religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver.
Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração e cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor.
Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.
Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição,antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilizacão fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos - por uma única, breve e intensa passagem.
É a isso que chamamos liberdade - a grande herança do mundo do Mediterrâneo."
(Do Miguel Sousa Tavares in Não te Deixarei Morrer, David Crockett)
Não gosto da profusão de altares de castiçais de talha dourada, de sacrários e cânticos e painéis.
Não gosto da arquitectura que não é à escala humana, nem nos meios utilizados nem nos fins que representa.
Prefiro a extensão plana das mesquitas, o seu jogo de colunas e sombras, o despojamento geométrico dos seus azulejos.
Prefiro mil vezes a herança do mundo árabe morto em Granada do que os símbolos da Reconquista cristã que o sepultou.
Prefiro mil vezes a leveza do mundo mediterrânico do que o sufoco das catedrais e castelos do Sacro Império Romano-Germânico.
Prefiro mil vezes os templos gregos, entre resina e mar e a quietude das oliveiras, do que os castelos de Inglaterra e as florestas de bétulas do Norte.
Prefiro mil vezes as kasbahs de Marrocos do que os castelos feudais da Europa, mil vezes Granada do que Versalhes.
E antes um Olimpo de Deuses de cada coisa do que um Deus único, antes o Al Andaluz do que os Reis Católicos, antes Roma do que o Papado, antes a luz e a democracia gregas do que a escuridão medieval.
Falo da nossa herança, o Mediterrâneo - a mais extraordinária civilização humana, a civilização da luz, da arte, da arquitectura, da democracia, do direito, da navegação e da descoberta, do mar e do deserto, das ilhas e dos golfos, das vinhas, dos olivais e dos pinhais, das estátuas profanas, das colunas e dos azulejos, dos pátios, dos terraços e das varandas, da cal, do branco e do azul. E a civilizaçao do Egipto, de Creta, de Atenas, de Roma, de Volubilis, de Tânger. Das cidades portuárias, de Alexandria a Lisboa e das Ilhas Gregas, da Sicília, de Malta, de Chipre, da Sardenha. São três mil anos a contemplar as estrelas do céu, a ouvir o som da água nas fontes e a tentar decifrar o mistério da morte.
Antes que a ideia de Deus esmagasse os homens, antes dos autos de fé, das perseguiões religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver.
Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração e cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor.
Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.
Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição,antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilizacão fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos - por uma única, breve e intensa passagem.
É a isso que chamamos liberdade - a grande herança do mundo do Mediterrâneo."
(Do Miguel Sousa Tavares in Não te Deixarei Morrer, David Crockett)
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